sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

TOM, nada de resposta

A frase título é a mesma que inicia o célebre romance As Aventuras de Tom Sawyer de Mark Twain. Ela dá ao leitor a primeira idéia da história: curiosidade, traquinagens e aventuras do garoto Tom Sawyer e seu amigo Huckleberry Finn.

Mas o tom que vou explorar hoje não é o de Twain, mas o tom próprio que cada obra literária tem e que cada autor deve explorar ao máximo para tornar sua história a mais fascinante e inesquecível possível.

O tom, ou voz, não tem somente a ver com os diálogos, monólogos ou a maneira que os personagens falam. É muito mais do que isso. Em Música ao Longe, Érico Veríssimo descreve Clarissa com uma voz peculiar. É a voz de Clarissa e, através de sua auto-análise, nós a conhecemos nesta passagem:

“Clarissa se mira no espelho. Acha-se diferente, no seu vestido branco de baile. Parece mais alta, mais velha. Fica por alguns minutos numa contemplação apaixonada, analisando-se. Está satisfeita com os olhos, que são pretos e brilhantes. (Seu Leocádio lhe disse um dia “Olhinhos de musmé cabocla”). O nariz podia ser um pouco mais fino, mas enfim a gente nunca deve dizer que não está satisfeita com o que tem …”

O autor também realça alguns aspectos da aparência de Clarissa através das opiniões de outras pessoas, utilizando termos regionais como musmé cabocla.

Em Viena, Viena e tanta tristeza, J. M. Simmel introduz seu personagem assim:

“Eu tenho essa saudade. Sempre que venho a Viena, ela aparece. Minha mãe colocava uma pomba de porcelana sobre o armário do meu quarto de criança, quando eu era menino e ficava triste. No pedestal da pomba havia uma inscrição que dizia: “A árvore da vida só floresce para quem é alegre”. E a árvore da vida voltava a cada dia a florescer para mim. As pessoas dizem que naquele tempo eu andava sempre alegre. Mas isso foi numa outra época, distante como se estivesse por trás de uma cortina de fumaça.”

A sensação de melancolia é evidente, deixando claro onde o autor nos leva nesse conto.

Mas, esperem! Antes que a dúvida surja quero esclarecer que tom - ou voz - e estilo são duas coisas diferentes, embora algumas vezes indiscerníveis em alguns autores. Voltando a Mark Twain observem estes dois exemplos. O primeiro, extraído de As Aventuras de Tom Sawyer tem um tom leve, aventuroso e dinâmico (tradução livre feita por mim do original em inglês).

“-TOM!
Nada de resposta.
- TOM!
Nada de resposta.
- O que será que aconteceu com esse menino? TOM!
Nada de resposta.
A velha senhora abaixou seus óculos e olhou sobre eles, vasculhando o quarto; depois, levantou-os para cima dos olhos e olhou por baixo deles. Ela raramente ou nunca olhou ATRAVÉS deles para procurar uma coisa tão pequena como um garoto; eles eram o símbolo de sua posição social, o orgulho do seu coração, e foram construídos para terem “estilo” e não para serviço – ele poderia enxergar do mesmo jeito através de um par de tampas de fogão. Ela pareceu perplexa por um momento, e então disse, sem ferocidade, mas alto o suficiente para que até os móveis pudessem ouvir:
- Bem, se eu te pegar eu -
Ela não terminou porque naquele momento estava se debruçando sob a cama e cutucando embaixo com a vassoura e, por isso mesmo, precisava de ar para intensificar os socos. Ela somente conseguir ressuscitar o gato com seus atos.”


Já em Um Ianque na Corte do Rei Arthur, Mark Twain apresenta um tom mais bucólico, idílico (tradução livre feita por mim do original em inglês):

"- Camelot, - eu disse para mim mesmo. – Não me lembro de ter ouvido falar dela. Deve ser o nome do asilo, provavelmente.
Era uma paisagem suave e reconfortante de verão, tão adorável quanto um sonho e tão solitária como domingo. O ar estava cheio do cheiro das flores, do zumbido dos insetos e do gorjear dos pássaros, e não havia pessoas, carruagens, não havia sinal de vida, nada acontecendo. A estrada era basicamente um caminho sinuoso com marcas de cascos e, aqui e ali. um leve traço de rodas em ambos os lados da grama – rodas que aparentemente tinham pneus tão largos quanto a mão de uma pessoa.”


Twain mantém seu estilo, sua maneira simples de escrever, porém adotando vozes diferentes nestes dois romances.

E, para terminar, mais um exemplo, extraído de um conto de minha autoria, intitulado Ventos de Outono. A personagem é uma jovem adolescente, sonhadora e romântica:

“Certa vez alguém me disse que a nossa vida era como o mar: cheia de ondas que dependiam do vento para serem grandes ou pequenas. Fiquei meio confusa com essa história e passei a associar o meu humor com as ventanias. Assim, no outono, eu sempre ficava para cima, mas nos dias calmos de verão, quando todos pareciam alegres e exultantes, eu era um mar sem ondas.”

Como escritor, use a variação de tons em sua obra e descubra a voz que existe em cada uma delas, e, como leitor, "ouça" a voz que existe em uma bem escrita obra literária.

Até a próxima,

Stanze

PS: O título deste artigo é uma homenagem à minha tia, a professora Maria da Graça Jorge. Ela adorava esse começo e tinha o apelido familiar de Tom ...

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Guerra de Palavras

Das guerras de confete e serpentina do Carnaval que já passou – e que eu curti apenas através dos CDs da Beth Carvalho e algumas caipirinhas – me inspirei para escrever sobre outra guerra, nem sempre tão alegre, algumas vezes inspiradora e inteligente, e outras tantas, abusiva e difamadora: a guerra das palavras.

Assistindo recentemente a série da TV Globo, Dalva e Herivelto, que conta a história da cantora Dalva de Oliveira e do cantor e compositor Herivelto Martins, achei curiosa a maneira com que os dois passaram a digladiar através das músicas que cantavam na rádio, após a dissolução do seu casamento.

Vejam só este exemplo, de autoria de Herivelto Martins e David Nasser:


Atiraste uma Pedra


Atiraste uma pedra no peito de quem
só te fez tanto bem
E quebraste um telhado, perdeste um abrigo
Feriste
um amigo
Conseguiste magoar quem das mágoas te livrou
Atiraste uma pedra
com as mãos que essa boca
Tantas vezes beijou
Quebraste um telhado
Que nas noites de frio te servia de abrigo
Perdeste um amigo que os teus
erros não viu
E o teu pranto enxugou

Mas acima de tudo atiraste uma
pedra
Turvando esta água
Esta água que um dia, por estranha ironia
Tua sede matou
Atiraste uma pedra no peito de quem
Só te fez tanto
bem


E a resposta, interpretada por Dalva de Oliveira, escrita por Wilson Batista

Calúnia


Quiseste ofuscar minha fama
E até jogar-me
na lama
Só porque eu vivo
a brilhar
Sim,mostraste ser invejoso
Viraste até mentiroso
Só para
caluniar.
Deixa a calúnia de lado
Se de fato és poeta
Deixa a
calúnia de lado
Que ela a mim não afeta
Tu me ofendes,tu serás o
ofendido
Pois quem com o ferro fere
Com
ferro será ferido.


Para quem quiser (re)ver um pouquinho dessa maravilhosa série e, especificamente da fase em que ambos brigavam através da música, achei este link no You Tube

A imprensa sempre foi o meio mais conhecido para protestar, reclamar e difamar, principalmente governos e pessoas. Pensem nos famosos pasquins e terão um exemplo perfeito do que estou falando.

O professor da Universidade Federal do Maranhão, Sebastião Jorge, escritor, jornalista e advogado, em seu livro Política Movida a Paixão, conta a trajetória jornalística de Odorico Mendes, escritor do jornal O Argos da Lei, onde defendia os interesses do país e da província do Maranhão de uma maneira ofensiva contra os desmandos de Portugal, e das batalhas literárias que travou contra seu arquiinimigo, o jornalista Garcia de Abranches e seu O Censor. Na maioria das vezes, como era de se esperar de dois cavalheiros educados nos idos de 1820, a guerra era primorosa e inteligente, porém, em outras vezes a civilidade deu lugar a ofensas e insultos. Uma leitura saborosa e histórica.

Mais detalhes do livro nesta resenha da Revista PJ:BR de setembro de 2005. Para vê-la, clique aqui.

Até a próxima!

Stanze

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Tudo depende do Ponto de Vista

Uma história é contada por várias pessoas de diferentes maneiras. Cada uma tem sua opinião sobre um mesmo fato ou acontecimento. Algumas expressam o fato a seu modo, realçando cores e sombras; já outras tentam ser neutras, dizendo que branco é branco e preto é preto, sem discutir sobre o provável cinza. A isso se chama Ponto de Vista. Cada um tem o seu e não se discute.

A criação literária também é assim, só que, ao contrário do dito popular, aqui se discutem pontos de vista. A teoria ensina que existem basicamente três pontos de vista: primeira pessoa, segunda pessoa e terceira pessoa.

A primeira pessoa é egocêntrica e egoísta. Ela conta toda a história, enaltecendo ou desmoralizando a si própria e aos demais personagens. Ela é forte, mas limitada em seu saber. Ela imagina mas não pode sentir pelos outros participantes da narrativa. Um grande exemplo é Dolores Claiborne de Stephen King, em que toda a trama é contada por Dolores, num fascinante monólogo de mais de 300 páginas.

A segunda pessoa é rara de se achar na literatura de ficção. Ela é tímida e se dirige diretamente ao leitor. Ela usa tu ou você. Um bom exemplo da sua presença se encontra nos livros de auto-ajuda.

A terceira pessoa é popular e gêmeas: a limitada e a onisciente. A limitada gosta de um personagem e navega com ele pela história inteira. Tudo que acontece está ao alcance dos seus sentidos somente. Já sua irmã gêmea, a terceira pessoa onisciente, gosta de brincar de Deus. Sabe tudo sobre todos e a história é contada por vários ângulos. Mas... espere aí... não seria então dizer que, neste caso, a história é contada sobre vários pontos de vista? Não, em se tratando de literatura o ponto de vista continua sendo um só: terceira pessoa onisciente. É o famoso estilo: ele disse, ela falou, etc. E, por serem gêmeas, também podem aparecer misturadas numa mesma obra literária, focando-se um personagem principal na maioria das vezes, mas também dando uma chance para outros personagens.

Mais raro, no entanto, é misturar primeiras com terceiras pessoas. Arrisca-se nesse caso confundir o leitor com tantos pontos de vista diferentes.
Brinque agora um pouquinho com a imaginação e descreva algo na terceira pessoa. Eu usei um personagem e um espelho:
“O espelho cobria toda a parede oposta à porta e fez com que Susana se visse por completo, provocando-lhe um leve tremor na boca. Não gostava do seu corpo, menos ainda das roupas que usava, embora tivesse toda a liberdade para escolhê-las…”

Agora, tente a mesma cena na primeira pessoa:
“Não pude evitar uma reação involuntária ao me ver refletida naquele espelho enorme. Parecia que aquela imagem realçava as partes que menos gostava em mim e que tentava inutilmente cobrir com aquelas roupas largas e desajeitadas…”
Experimente, ouse e explore as capacidades de cada ponto de vista!
Até a próxima!