sexta-feira, 26 de março de 2010

A Onomatopéia Literária

Os nossos amigos de 4, 2 ou nenhuma pata foram transformados em alguns personagens inesquecíveis na literatura. Alguns com voz própria, como no caso de Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach, outros assumindo sua condição animal mas com personalidade marcante, como Moby Dick, de Herman Melville. Em ambos os livros os autores usaram os animais para explorar temas profundos como o bem e o mal, a perseverança e a superação das limitações.

Baleia, a cachorra magrela de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, me perseguiu durante a infância por causa das obrigatórias leituras que nos eram impingidas nos tempos de escola. Eu preferia voar com Beleza Negra ou me admirar da coragem dos Caninos Brancos. Somente mais tarde foi que reconheci a força de Baleia e a beleza mórbida de Vidas Secas.

É claro que seria um pecado não mencionar aqui a raposa de O Pequeno Príncipe, de Saint Exupèry, que nos deu todas aquelas frases maravilhosas sobre amor e amizade que usamos com os amigos e namorados pela adolescência afora. Descobri este vídeo do filme com Gene Wilder no papel da raposa.



Recentemente chorei com Marley e Eu, de John Grogan. Marley me fez lembrar de um outro cachorro que tive na infância, Mr. Bascow. Terrível, mas adorável. Mordi os dedos de suspense ao ler O Cão dos Baskerville, de Arthur Conan Doyle, ou O Corvo, de Edgar Allan Poe. E sempre me irritei com aquele coelho apressado de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Caroll.

Todas essas emoções os animais podem provocar e ser uma grande fonte de inspiração para uma boa história. Observem bem os nossos amigos animais e usem-nos como personagens presentes e interessantes.

Deixo-os hoje com estes três fantásticos animais que povoaram a minha infância!







Até a próxima

Stanze
O artigo de hoje é dedicado a Atlantinha, Basco, Mr. Bascow, Nikita e todos os meus outros queridos amigos e companheiros de 4 patas

sexta-feira, 19 de março de 2010

O Personagem é um Ser 3D

Hoje quando escolhi o título para este artigo comentei com uma amiga e a resposta foi: "acuma?" Mas é isso mesmo. Nos acostumamos a pensar nos personagens que criamos como seres de uma única dimensão: a do papel. Ou, no máximo, duas dimensões: o que criamos e o que o leitor interpreta.

Existem com certeza personagens de uma ou duas dimensões. Personagens que são tão óbvios e sem aprofundamento que não conseguimos nos envolver com eles. E outros, cujos caracteres não possuem uma constância lógica, que nos deixam sem saber onde suas histórias nos estão levando.

Um personagem completo deve ter três dimensões para nos deixar com aquela sensação de perder um amigo na última página do livro.

A primeira dimensão é aquilo que se vê externamente, os traços físicos do personagem. Não é necessário que o leitor saiba como ele é, da ponta dos cabelos à unha do pé, mas é preciso sim que o autor o conheça bem.

A segunda dimensão se refere ao passado do personagem, tudo aquilo que o tornou a pessoa (ou personagem) que é. De vez em quando numa obra literária o leitor descobre um pouco desse passado, através de lembranças ou histórias contadas por outros personagens. Nem sempre, entretanto, é preciso que o leitor conheça esse passado, mas o autor tem que saber a história do seu personagem desde que ele nasceu, ou pelo menos, bem perto disso. Desse conhecimento é que o autor molda o caráter do seu personagem, suas qualidades, defeitos, vícios, medos, etc.

A terceira dimensão é aquela do ponto de vista do personagem, como ele vê o mundo que foi criado para ele, como reage e age, como se expressa, como vive sua própria história.

Um personagem com essas três dimensões tem vida, participa da história e torna-se, junto com o autor, co-criador de uma fantástica obra literária.

Até a próxima

Stanze 

sexta-feira, 12 de março de 2010

Inspiração

Esta semana eu passei muito tempo pensando nessa palavra. Na verdade eu passei a semana procurando a dita cuja e o que ela poderia me trazer para o artigo de hoje. Procurei e procurei até que resolvi abrir os olhos. E então eu achei! Ela estava o tempo todo à minha frente, me acenando com os braços e criando ruídos no meu cérebro: INSPIRAÇÃO.

O que é inspiração? Quando inspiramos colocamos ar para dentro do organismo. Deveria ser ar puro, se bem que nem sempre é possível. A inspiração literária é isso mesmo: colocar para dentro do cérebro idéias novas, enredos, personagens, um mundo inteiro.

Mas de onde é que vem a inspiração? A grande vantagem da inspiração artística ser feita de idéias é que ela não precisa somente ser respirada. Ela pode também ser sentida, ouvida ou falada.

Pegue um jornal, procure uma notícia interessante e construa sua própria história. Sente por alguns instantes em um banco de praça ou em qualquer local em que passem pessoas e procure ali por um personagem especial. Observe as roupas, os trejeitos, o modo de andar. Imagine o que elas carregam nas bolsas, nos sacos, nos bolsos. Aprecie uma árvore antiga. Quantas pessoas já se apoiaram naquele tronco? Há palavras escritas nele? Que emoções elas sentiram naquele exato momento?

Lembrei-me de um exercício durante um workshop em Veneza. Nosso grupo de escritores saiu do burburinho da zona turística e foi para o bairro judeu, perto da estação ferroviária. Durante uma hora não podíamos falar uns com os outros. Teríamos que utilizar os outros sentidos para criar idéias. Fechei os olhos e deixei que os ouvidos e o nariz trabalhassem por mim. Senti o cheiro de fumaça e, estando ali num bairro judeu, associei a coisas ruins. Mas também ouvi o barulho da rua e tive maravilhosas sensações de vida e alegria. O suave deslizar dos remos das gondolas na água e o cantar dos gondoleiros. Abrindo os olhos apreciei o festival de cores das roupas penduradas nas janelas, tão típico das vilas italianas e tão próximo do Nordeste brasileiro.

Dessa experiência escrevi um pequeno conto, publicado na Letterpress de Brandi Reissenweber, volume 4, número 2, de fevereiro de 2006.

O Gondoleiro
(conto originalmente escrito em inglês, traduzido aqui para o português)

Um canto estreito, uma curva para a direita revelando a magnitude do Canal Grande. Eu observo as feições deliciadas dos turistas japoneses que conduzo na minha gôndola. Eu repito as mesmas fábulas sobre Lord Byron e Casanova que eles acreditam ser verdadeiras. Quando estou de bom humor ou um dos meus passageiros é uma dama bonita eu lhes mostro minha voz e lhes canto algumas músicas italianas.

Dias após dias tantas pessoas diferentes sentam na minha gôndola que não as vejo mais como pessoas. Da mesma forma como já não vejo Veneza como uma cidade. Sua história verdadeira se dissolve entre as inúmeras lendas, as pessoas reais estão sufocadas pelos milhões de turistas.

Quando meu pai me ensinou a conduzir a gondôla pelos canais estreitos eu amava o que fazia e decidi que era aquilo que queria continuar a fazer pelo resto da minha vida. Eu me sentiria rodeado por pessoas de todos os cantos do mundo e lhes mostraria minha cidade, minha Veneza, com orgulho e entusiasmo.

Agora, vinte anos depois, ainda continuo jovem, mas os sonhos que me guiaram naquele primeiro passeio com meu pai já se foram. Eu perdi minha cidade para o mundo, para os estrangeiros que, com suas línguas estranhas, tornaram-na tão não-italiana. Eu comecei a acreditar que os canais cheiravam mal ou que os pombos, embora bonitos, são abusivos e sujam tudo. As fábulas que nunca lhes contei estão se tornando verdade para mim.

Eu conduzo minha gôndola da mesma maneira como sempre o fiz, eu canto de vez e quando e continuo contando histórias mas tudo é diferente agora. Dizem que um dia Veneza irá desaparecer nas águas. Esse dia já chegou para mim. Eu posso sentir minha alma esmagada sob os passos daqueles milhares de pés estrangeiros e espalhada nos sons daquelas milhões de línguas.

E Veneza, a Veneza dos meus sonhos, há muito perdida nas ondas dessas estranhas culturas.

Até a próxima

Stanze

sexta-feira, 5 de março de 2010

E Se Houver Uma Pedra no Meio do Caminho?

Um dos maiores medos que aflige todo escritor é o chamado bloqueio (writer’s block). Imaginamos um personagem, criamos e desenvolvemos suas feições, caráter, maneiras, aparências, lhe damos um mundo e uma história mas, de repente ...

“...no meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho...”
(Carlos Drummond de Andrade)

Nosso personagem olha para um lado e para o outro. Essa pedra é tão grande que tapa a visão do outro lado, esconde o horizonte e cresce, cresce e cresce. Nosso personagem nos olha, levanta os braços, coça a cabeça e nos pergunta:

E agora? Tira essa pedra do meu caminho porque eu quero passar e continuar a minha história.

E agora?, pergunto eu. Como podemos dizer a ele que a história não existe exatamente porque a pedra se colocou no meio do caminho?



Essa pedra um dia aparece para quase todos os escritores.E às vezes não é uma só, mas várias pedras, que surgem na mesma ou em diferentes histórias. Para deslocar essa pedreira toda é interessante ter algumas alavancas. Uma delas é a técnica do E SE?


Lá vai nosso personagem. Ele é um aventureiro e repórter fotográfico, gosta de viajar e explorar lugares exóticos. Um dia ele.... Numa viagem ele.... e agora? A tal da pedra apareceu e as idéias sumiram. Peguem a alavanca E SE? e cutuquem a pedra até que se mova e desobstrua o caminho.

E SE o fotógrafo se apaixona por uma moça que não gosta de viajar?
E SE numa viagem ele pega uma doença estranha e tem que ficar imobilizado?
E SE ele ficar cego num acidente?
E SE ele for roubado e perder a sua câmara com as mais raras fotos?
E SE ele descobrir um tesouro secular?
E SE ele encontrar uma passagem misteriosa para um outro mundo?

Brincando com a alavanca do E SE nós até podemos mudar completamente o rumo da narrativa. O que seria inicialmente uma história de aventura abre caminho para um romance, ou uma ficção científica ou um drama. As possibilidades são infinitas e a alavanca pode ser utilizada em qualquer momento do processo da criação.

Lembrem-se que Arquimedes só queria uma alavanca e um ponto de apoio para mover o mundo. Nós escritores precisamos de um pouco menos do que isso para criar um mundo.


Até a próxima


Stanze