sexta-feira, 12 de março de 2010

Inspiração

Esta semana eu passei muito tempo pensando nessa palavra. Na verdade eu passei a semana procurando a dita cuja e o que ela poderia me trazer para o artigo de hoje. Procurei e procurei até que resolvi abrir os olhos. E então eu achei! Ela estava o tempo todo à minha frente, me acenando com os braços e criando ruídos no meu cérebro: INSPIRAÇÃO.

O que é inspiração? Quando inspiramos colocamos ar para dentro do organismo. Deveria ser ar puro, se bem que nem sempre é possível. A inspiração literária é isso mesmo: colocar para dentro do cérebro idéias novas, enredos, personagens, um mundo inteiro.

Mas de onde é que vem a inspiração? A grande vantagem da inspiração artística ser feita de idéias é que ela não precisa somente ser respirada. Ela pode também ser sentida, ouvida ou falada.

Pegue um jornal, procure uma notícia interessante e construa sua própria história. Sente por alguns instantes em um banco de praça ou em qualquer local em que passem pessoas e procure ali por um personagem especial. Observe as roupas, os trejeitos, o modo de andar. Imagine o que elas carregam nas bolsas, nos sacos, nos bolsos. Aprecie uma árvore antiga. Quantas pessoas já se apoiaram naquele tronco? Há palavras escritas nele? Que emoções elas sentiram naquele exato momento?

Lembrei-me de um exercício durante um workshop em Veneza. Nosso grupo de escritores saiu do burburinho da zona turística e foi para o bairro judeu, perto da estação ferroviária. Durante uma hora não podíamos falar uns com os outros. Teríamos que utilizar os outros sentidos para criar idéias. Fechei os olhos e deixei que os ouvidos e o nariz trabalhassem por mim. Senti o cheiro de fumaça e, estando ali num bairro judeu, associei a coisas ruins. Mas também ouvi o barulho da rua e tive maravilhosas sensações de vida e alegria. O suave deslizar dos remos das gondolas na água e o cantar dos gondoleiros. Abrindo os olhos apreciei o festival de cores das roupas penduradas nas janelas, tão típico das vilas italianas e tão próximo do Nordeste brasileiro.

Dessa experiência escrevi um pequeno conto, publicado na Letterpress de Brandi Reissenweber, volume 4, número 2, de fevereiro de 2006.

O Gondoleiro
(conto originalmente escrito em inglês, traduzido aqui para o português)

Um canto estreito, uma curva para a direita revelando a magnitude do Canal Grande. Eu observo as feições deliciadas dos turistas japoneses que conduzo na minha gôndola. Eu repito as mesmas fábulas sobre Lord Byron e Casanova que eles acreditam ser verdadeiras. Quando estou de bom humor ou um dos meus passageiros é uma dama bonita eu lhes mostro minha voz e lhes canto algumas músicas italianas.

Dias após dias tantas pessoas diferentes sentam na minha gôndola que não as vejo mais como pessoas. Da mesma forma como já não vejo Veneza como uma cidade. Sua história verdadeira se dissolve entre as inúmeras lendas, as pessoas reais estão sufocadas pelos milhões de turistas.

Quando meu pai me ensinou a conduzir a gondôla pelos canais estreitos eu amava o que fazia e decidi que era aquilo que queria continuar a fazer pelo resto da minha vida. Eu me sentiria rodeado por pessoas de todos os cantos do mundo e lhes mostraria minha cidade, minha Veneza, com orgulho e entusiasmo.

Agora, vinte anos depois, ainda continuo jovem, mas os sonhos que me guiaram naquele primeiro passeio com meu pai já se foram. Eu perdi minha cidade para o mundo, para os estrangeiros que, com suas línguas estranhas, tornaram-na tão não-italiana. Eu comecei a acreditar que os canais cheiravam mal ou que os pombos, embora bonitos, são abusivos e sujam tudo. As fábulas que nunca lhes contei estão se tornando verdade para mim.

Eu conduzo minha gôndola da mesma maneira como sempre o fiz, eu canto de vez e quando e continuo contando histórias mas tudo é diferente agora. Dizem que um dia Veneza irá desaparecer nas águas. Esse dia já chegou para mim. Eu posso sentir minha alma esmagada sob os passos daqueles milhares de pés estrangeiros e espalhada nos sons daquelas milhões de línguas.

E Veneza, a Veneza dos meus sonhos, há muito perdida nas ondas dessas estranhas culturas.

Até a próxima

Stanze

2 comentários:

  1. Nanda,

    Muito legal seu texto e também o breve conto.

    Semanas atrás eu também tive uma idéia semelhante enquanto esperava um amigo, que já estava bastante atrasado, mas que tivera a educação de me ligar avisando que estava retido e iria demorar.

    Fiquei vendo as pessoas passando e prestando mais atenção naquelas de aparência menos "convencional", tentando imaginar como seriam suas vidas num mundo que é tão cruel com quem foge do padrão da época.

    Foi um exercício bem divertido. Não o coloco no papel, pois não teria a mesma competência sua para isso. Quando jovem gostava de desenhar e de escrever contos e poesias (saudade daquele tempo sem pressa, sem pressão de trabalho, sem violência...). Por motivos que nem sempre controlamos fui me afastando destas duas atividades prazerosas e hoje, ao 53 anos, sinto muita falta delas.

    Assim que me aposentar pretendo voltar ao meu curso de belas artes e a escrever, o que vai ser muito dificultado pelo tempo afastado, que endureceu as mãos, tanto para o desenho como para escrever. Se bem que agora o computador ajuda... e ainda corrige nossos erros de escrita.

    Saudações alvinegras e um caloroso beijo desde este Rio de Janeiro com 39º.

    Alvarez

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  2. Grande Alvarez! Nunca é tarde ou cedo para escrever. Essa arte é como andar de bicicleta, a gente não esquece nunca. Enferruja, é verdade, mas nunca morre.

    Beijos de uma Holanda quase entrando na primavera!
    Nanda

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