sexta-feira, 4 de junho de 2010

Um olhar de escritor

Visitando hoje uma feira de produtos e coisas da Itália tirei a inspiração para o texto desta sexta. Lembrei-me, ao passear pelos stands e ver a "praça Venezia", de dois exercícios que fizemos em Veneza durante um workshop de literatura. O primeiro consistia em passear pela cidade, que naquela época estava apresentando uma exibição de Arte Moderna a céu aberto, com esculturas espalhadas por toda a parte, escolher um visual e escrever sobre ele.

Eu me apaixonei por uma face enorme, deitada de lado no chão, oca na parte de trás e com um olhar vazio na parte da frente. Dessa visão, e com a idéia do exercício na cabeça, eu criei este texto, que permaneceu até hoje como um borrão (os textos que se seguem foram traduzidos a grosso modo dos exercícios originais em inglês, o qual foram realizados na maioria das vezes em 15 minutos):

"Tenho caminhado pelas ruas de Veneza, seguindo o guia turístico que tenho nas mãos. A Ponte Rialto, pendurada sobre o Canal Grande, cheia como sempre dos turistas atraídos pelas barracas de souvenirs. Passei pela Piazza San Marco e os sons da orquestra tocando ao vivo me fez parar. Senti em minha boca o sabor do Valpolicello que dividi com meu pai há 10 anos. Nós tínhamos então andado de café em café seguindo a próxima orquestra a tocar. Deixei que as lembranças desaparecessem vagarosamente com as últimas notas do piano antes de retornar à minha lista de atrações.
No meu caminho para a Academia eu vi as cabeças da Bienal. Parei para observá-las. Elas não faziam parte da minha lista-de-coisas-para-ver mas estavam lá e eu tinha que vê-las. Assim como certos momentos na minha vida elas estavam simplesmente lá, deitadas, impossíveis de serem ignoradas. De compromissos em compromissos que moldam a nossa vida, as cabeças tinham aparecido como os momentos que surgem do nada e, como elas, também são vazios e precisando ser preenchidos. Momentos que havia ignorado até então, como se foram idéias daquelas cabeças ocas. Joguei fora o meu guia. Já não era mais ncessário. Eu sabia agora. Eu havia vindo a Veneza trazida por aquelas cabeças."

O segundo exercício consistia em sentarmos numa praça e observamos as pessoas à nossa volta. Deveríamos escolher alguma e escrever. A idéia era observar o momento em que a pessoa se revelasse, mostrasse alguns hábitos e nos tocasse como escritores. Eis o que surgiu da minha caneta ao observar uma senhora que caminhava vagarosamente se apoiando pelas paredes:

"Um passo após o outro. Uma pausa. Então um movimento vagaroso para ajustar a bengala. Seu andar difícil sustentado pela mão que se apóia na parede. Mais quatro passos. Outra pausa. O caminho longo não era mais longo que sua própria vida. Seu corpo frágil, coberto por um casaco comprido, tornava-se pesado pelos anos. Ela caminhava devagar, tocando as paredes da sua velha Veneza, sentindo sua textura numa troca empática de experiência. 'Você é mais velha do que eu, mas viverá mais', ela deve ter pensado.
Ela caminhou por entre as mesas de um restaurante espalhadas pela praça, mais devagar ainda agora, já que perdera momentaneamente o apoio das suas paredes amigas. Ela atravessou sem olhar as faces dos clientes. Então, encontrando novamente suas paredes, ela sorriu. Pessoas estranhas a assustavam, mas não as paredes. As pessoas vivem e morrem, como muitas haviam feito em sua vida. Mas não as paredes. Elas estarão lá mesmo depois que ela se vá. Elas estarão lá para sempre."

Talvez aquela senhora não fosse de Veneza, nem tampouco andasse sempre se apoiando nas paredes. Talvez ela não estivesse pensando em nada ou fosse triste ou alegre. Não importa. No momento em que ela começou a caminhar meu olhar foi atraído para sua figura. Ela, naquele momento, se mostrou para mim. E essa era a idéia. Criar do visual.

Esta técnica pode ser repetida de várias maneiras, através de fotos, vídeos ou mesmo pessoas. Um escritor deve ter um olhar especial e ver além do que está na sua frente. Pegue fotos, observe pessoas, tente descobrir o que está por trás de um rosto, de um gesto ou de uma imagem. Crie!

Termino hoje com algumas dicas interessantes que me foram passadas pela minha professora em Veneza.

1-Não tenha medo de mostrar a si próprio;
2-Brinque de teatro, ouse viver a vida dos outros;
3-Não aceite nada como terminado. Mude-o;
4-Procure flores em lugares secos;
5-Se sonhar com algo, escreva;
6-Quando estiver escrevendo sobre determinado assunto, crie um clima: música, imagens, cheiros;
7-Continue mesmo que pareça estranho;
8-Tente criar anjos e demônios com a mesma intensidade;
9-Se puder, viaje o máximo que puder;
10-Transforme suas más experiências em grandes personagens ou histórias;
11-Faça com que um minuto a mais valha por uma hora.  

Até a próxima,

Stanze


    

Nenhum comentário:

Postar um comentário